DESAFIO AO DEBATE JURÍDICO ABERTO SOBRE O CASAMENTO HOMOSSEXUAL EM ANGOLA


Por: Launio Carvalho
Licenciando em Direito pela Universidade Católica de Angola e membro do ODFA

Reconhecemos, desde já, a provisória (e aparente) impertinência desta temática, contudo, preferimos adiantar que o presente texto constitui um mero estímulo à discussão futura (quiçá distante), livre e desapaixonada sobre o assunto. Adiantamos que não é objectivo deste texto fazer análise da homossexualidade mas unicamente dar contributos à problemática (futura) do casamento homossexual. 

Recorda-se da mais recente edição do Human Rights Moot Court Competition realizado pela COTSUCAN da Universidade Católica de Angola em 2019, onde, entre outras questões, levantou-se a questão de se saber se era juridicamente correcto atalhar a realização do Casamento Homossexual. Como é comum nestes eventos, as ideais não correram sobre a mesma direcção nem sentido. O mais interessante de se ver foi a escassez, quase absoluta, de jurisprudência (constituía chave de ouro naquele fórum) tanto da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos quanto do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, o que obrigou o recurso à jurisprudência de tribunais de outros continentes e sobretudo à doutrina. O exercício aqui não será diferente.

Com o passar do tempo, o conceito de casamento tem sido diverso, porém, corroboramos com o entendimento de que corresponde à “união legal de homem e mulher para constituir família” [1] [2]. É ao menos um conceito mais próximo do conceito legal disposto no Código da Família (C.F.) segundo o qual “o casamento é a união voluntária entre um homem e uma mulher, formalizada nos termos da lei, com o objectivo de estabelecer uma plena comunhão de vida” (artigo 20.º do C.F.), apresentando ambos a ideia de que a lei é que qualifica uma união como casamento, e o fazem acertadamente pois o casamento não é a única união capaz de constituir família. Nos distanciamos, assim, do conceito apresentado pelo Dicionário Fundamental de Língua Portuguesa que define o casamento como sendo “a união legítima entre homem e mulher” [3], por ser uma síntese bastante ambígua. Merece revisão.

A respeito da constituição da família como fim do casamento, o preceito é reforçado pela Constituição da República de Angola (C.R.A.) ao dispor que “a família é o núcleo fundamental da organização da sociedade e é objecto de especial protecção do Estado, quer se funde em casamento, quer em união de facto, entre homem e mulher” (artigo 35.º, nº1 da CRA). Possível discussão poderia surgir a respeito do número seguinte do mesmo artigo, por estabelecer que “todos têm o direito de livremente constituir família nos termos da Constituição e da lei”, porém, prevalece, no nosso entender, o Princípio da Unidade da Constituição criando um “casamento” jurídico-interpretativo entre os nºs 1 e 2 do artigo 35.º da CRA, apresentando claramente uma faculdade de “constituir família” conferida a homens e mulheres à moda heterossexual.  

É já à partida nítido que o casamento homossexual – o celebrado entre pessoas do mesmo sexo – não cabe nem na letra nem no espírito da lei angolana. Também não cabia, a título comparativo, nos elementos jurídico-hermenêuticos da lei portuguesa , que mais tarde veio adoptar forma diferente, considerando já ser “o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida (…)” (artigo 1577.º do Código Civil Português, que na sua fórmula inicial referia-se a “pessoas do mesmo sexo”). Já se questiona: Será possível também alterar-se o C.F. em Angola para uma fórmula que permita abertamente o casamento homossexual? 

Talvez seja premente passar em revista sobre a reacção doutrinal e jurisprudencial da permissão do casamento homossexual em Portugal. O iter pelo qual percorreu a mudança do diploma legislativo que deu lugar ao casamento homossexual por via da lei nº 9/2010 de 31 de Maio foi marcado por intervenções controvertidas (por economia, não enunciaremos em detalhes). Essa lei foi objecto de fiscalização constitucional preventiva, a requerimento do Presidente da República, a respeito da sua conformidade com a liberdade de constituir família e contrair casamento em condições de igualdade, tendo o Acórdão n.º 121/2010, de 8 de Abril, do Tribunal Constitucional Português (de que foi relator o Cons. Vítor Gomes), revelado a pretensão do Guarda da Constituição em deixar a decisão à discrição do legislador ordinário, tendo entendido que a Constituição não toma posição sobre o assunto. 

Em nossa opinião, a Constituição Portuguesa favoreceu (pela omissão) tal mudança, diferente da Constituição angolana que desenhou com fortes contornos a sua ideia de constituição de família por via do Casamento. O Artigo 36.º da Constituição Portuguesa usa a expressão “os cônjuges” ao passo que o artigo 35.º da Constituição Angolana usa por duas vezes a expressão “o homem e a mulher”, que conserva o entendimento tradicional de casamento (heterossexual). 

O Prof. Doutor Oliveira Ascensão [4] é categórico ao dizer que “as noções actuais de casamento e família não são compatíveis com uma união de pessoas do mesmo sexo” e por isso entende que o legislador ordinário andou mal, sendo contra a disposição do diploma que alterou o Código Civil sobre a permissão do casamento homossexual.  Concordamos com esta posição na medida em que, se a constituição de família é por excelência o fim do casamento deve-se atender ao valor cultural e social da família de que o jurídico é material e axiologicamente subordinado, tais valores estão distantes do tendencialmente formulado.

Em África, explica Philomena N. Mwaura [5], a família possui uma forma simples e uma complexa, a forma simples é composta por marido, esposa e filhos, enquanto na sua forma complexa e mais comum é alargada, até incluir pais, avós, tios, tias, irmãos e irmãs, que por sua vez podem ter filhos próprios ou outros parentes próximos. Deste modo, julgamos não haver espaço para o enquadramento do casamento homossexual ao conceito de família que perfilamos, como afirmara o Prof. Doutor Oliveira Ascensão.

Na nossa famosa “era dos direitos”, a homossexualidade é já reconhecida como direito humano [6] porém o entendimento não é o mesmo relativamente ao casamento homossexual, declarado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos [7] como acto não pertencente à classe dos direitos humanos (não que seja contra eles) e adianta que a protecção da instituição (e concepção) tradicional do casamento é um interesse válido do Estado.

Respondendo à questão que colocámos acima, já a título de conclusão, entendemos que a alteração do Código da Família no sentido de permitir o Casamento Homossexual seria descabida à realidade cultural, social e até ao contexto constitucional. Só uma alteração da CRA respeitante àquele aspecto nos conduziria a um segundo debate, onde defenderíamos obviamente uma degradação da família pelo jurídico deficiente e arbitrário. 

Bom Debate!

11/01/2020
_____________________________
[1] Dicionário de Língua Portuguesa. 5 Ed. Porto: Porto Editora, 1979.
[2] No mesmo sentido, SANTOS, Washington dos. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
[3] Dicionário Fundamental de Língua Portuguesa. Luanda: Texto Editores – ANGOLA, 2013.
[4] ASCENSÃO, José de Oliveira. O Casamento de Pessoas do Mesmo Sexo. Disponível em: acesso em 7 de Jan de 2020.
[5] MWAURA, Philomena N. A Família na África. L’Osservatore Romano. Disponível em: < http://www.osservatoreromano.va/pt/news/familia-na-africa > acesso em 7 de Jan de 2020.
[6] FURTADO, E. T.; MENDES, A. S. V. Os direitos humanos de 5ª geração enquanto direito à paz e seus reflexos no mundo do trabalho - inércias, avanços e retrocessos na constituição federal e na legislação. Disponível em: < http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/brasilia/02_335.pdf > acesso em 10 de Jan de 2020.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O DIREITO AO SOSSEGO COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL EM ANGOLA

O Estado de emergência angolano: Uma análise sobre a competência em matéria de limitação ou suspensão de direitos fundamentais em períodos de excepção.*

SOBRE A INVOLUÇÃO DO NOVO REGULAMENTO GERAL DE AVALIAÇÃO DE IMPACTE AMBIENTAL E LICENCIAMENTO AMBIENTAL