Da materialidade constitucional dos direitos fundamentais: (A)tipicidade dos direitos fundamentais?

M. Próspero de Almeida
Estudante finalista da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola - FDUCAN
Colaborador do Odfa

Resumo

Nos propusemos, com o presente artigo, fazer uma análise da (a)tipicidade dos direitos fundamentais na CRA. No artigo que ora escrevemos, começaremos por conceituar direitos humanos e direitos fundamentais, bem como apresentar a sua clássica distinção. Posteriormente, mostraremos que, além dos direitos formalmente fundamentais, existem e têm até acolhimento constitucional no ordenamento jurídico angolano, por via da cláusula de abertura, os direitos materialmente constitucionais.

Palavras-chave: Direitos fundamentais; direitos humanos; cláusula aberta; Constituição; formal; material; tipicidade; taxatividade.

Abreviaturas: Art. — Artigo;
CRA - Constituição da República de Angola;
CRP — Constituição da República Portuguesa;
CRFB — Constituição da República Federativa do Brasil;
LPC – Lei do Processo Constitucional; MP — Ministério Público;
n.º — Número;
§ — parágrafo.

Sumário: 1. Introdução.
2. A Fundamentalidade de Direitos Subjectivos.
3. A Cláusula Aberta.
4. Conclusão.
5. Bibliografia.

1.Introdução

Os direitos humanos são conquistas da humanidade. Resultam de uma longa luta em prol do seu reconhecimento por parte dos poderes públicos. Constituem o reconhecimento das aspirações e faculdades consideradas essenciais para o bom desenvolvimento do homem, quer enquanto indivíduo quer enquanto ser social.

Os direitos humanos podem ser conceituados como sendo “garantias jurídicas universais que protegem indivíduos e grupos contra ações ou omissões dos governos que atentem contra a dignidade humana ” e não apenas em relação ao Estado (eficácia vertical), mas também em relação aos particulares (efeito externo), pois hoje já se reconhece uma eficácia horizontal dos direitos humanos ou fundamentais .

Estes direitos quando reconhecidos na Constituição de determinado país são chamados de direitos fundamentais.

Assim, a distinção  entre direitos humanos e direitos fundamentais não é ontológica, sendo que o conteúdo de ambos é o mesmo, residindo a sua diferença do facto de que os direitos humanos geralmente referem-se as faculdades essenciais para o pleno desenvolvimento da pessoa humana, consagradas nos instrumentos de Direito Internacional, enquanto usamos a expressão direitos fundamentais para nos referirmos as mesmas faculdades consagradas na Constituição de determinado Estado.

2.A Fundamentalidade de direitos subjectivos.

Que todo o direito fundamental é um direito subjectivo, isso é hoje um ponto assente na doutrina, todavia, nem todo o direito subjectivo é um direito fundamental. Por exemplo, os direitos de crédito não são, em si mesmos, direitos fundamentais.

Na Constituição nós temos a consagração de vários direitos subjectivos, todavia, embora todos eles sejam direitos constitucionais, nem todos eles são direitos fundamentais. A título de exemplo, veja-se o direito à inamovibilidade dos Magistrados Judiciais e do MP (179.º e n.º 3 do art. 187.º) e o direito do Advogado se comunicar pessoal e reservadamente com o seu constituinte (n.º 3 do art. 194.º).

Os direitos fundamentais como já vimos, constituem as faculdades e/ou garantias essenciais para o pleno desenvolvimento da pessoa humana em todas as suas dimensões, consagradas na Constituição de determinado Estado.

António LUÑO conceitua direitos fundamentais como “um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, que devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos a nível nacional e internacional.”

O grande problema quanto aos direitos fundamentais, no âmbito de nosso artigo, é o de saber se apenas aqueles que se acham expressamente consagrados na Constituição gozam deste estatuto ou se, pelo contrário, temos uma Constituição aberta quanto a outros direitos fundamentais não expressamente previstos no seu catálogo?

Quanto a Constituição, é ponto assente na doutrina do Direito Constitucional que ela pode ser formal ou material , pelo que uma determinada norma ou matéria poderá não ser formalmente constitucional, mas ser materialmente constitucional e vice-versa. Constituição formal é exatamente o conjunto de normas (regras e princípios) consagradas no texto constitucional, enquanto a Constituição material trata-se das normas que versam sobre matérias com dignidade constitucional, estejam ou não escritas no texto constitucional. As matérias com dignidade constitucionais são as relativas a organização política do Estado e o exercício do poder político (forma do Estado, sistema político e de governo), aos direitos fundamentais, bem como a protecção da própria Constituição. Assim sendo, as normas, escritas ou não na Constituição, que versem sobre estas matérias têm dignidade constitucional, sendo materialmente constitucionais.

Da distinção entre Constituição em sentido material e formal, podemos classificar também os direitos fundamentais em direitos formalmente fundamentais e direitos materialmente fundamentais, sendo que a diferença reside no facto de que os primeiros referem-se aos direitos fundamentais formalmente estabelecidos na Constituição (os direitos constantes da do Título II da CRA), enquanto os segundos referem-se aos direitos fundamentais que, estando ou não na Constituição formal, enquadram-se no conceito de Constituição material, uma vez que se trata de matéria com dignidade constitucional. A doutrina majoritária entende que os direitos formalmente fundamentais são também materialmente constitucionais, não sendo o contrário verdadeiro . Jorge Miranda chega mesmo a afirmar que “todos os direitos fundamentais em sentido formal são também direitos fundamentais em sentido material. Mas há direitos fundamentais em sentido material para além destes.”

Assim, quando falamos em direitos fundamentais não nos referimos apenas àqueles que se encontram consagrados expressamente no catálogo da Constituição formal de um Estado mas, junto à estes, aqueles que se encontram fora do catálogo de direitos fundamentais constante da Constituição, estando esparsos nela, que resultam implicitamente de princípios e regras consagradas na Constituição e, também, aqueles que se encontram em dispositivos esparsos (diplomas infraconstitucionais e tratados internacionais, podendo se incluir também aqui o Direito Consuetudinário).

Jorge Miranda , tratando exactamente sobre os direitos fundamentais, fala da sua não tipicidade, afastando a ideia de que apenas são direitos fundamentais os que estejam expressamente previstos na Constituição, dando abertura ao conceito de direitos materialmente fundamentais.

O Constitucionalista português conceitua os direitos fundamentais como sendo “os direitos ou as posições jurídicas activas das pessoas enquanto tais, individuais ou institucionalmente consideradas, assentes na Constituição, seja na Constituição formal, seja na Constituição material – donde, direitos fundamentais em sentido formal e direitos fundamentais em sentido material.”  Para este autor, os direitos fundamentais em sentido material “constituem a base jurídica da vida humana no seu nível actual de dignidade, as bases principais da situação jurídica de cada pessoa (...), quer estejam consagrados na Constituição, quer estejam consagrados nas leis ou nas regras aplicáveis de direito internacional”.

Assim, a fundamentalidade de direitos subjectivos pode decorrer do facto de estarem expressamente consagrados na Constituição (fundamentalidade formal) ou de serem “faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas” , estejam ou não no texto constitucional (fundamentalidade material).

No mesmo sentido, SARLET  apresenta um conceito que conjuga o sentido material e formal de direitos fundamentais, definindo-os como sendo “...aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância, integradas ao texto constitucional e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos, bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal.

3.A Cláusula aberta
A cláusula aberta é um princípio  que permite a aceitação numa determinada ordem jurídica de direitos fundamentais não especialmente constantes do texto constitucional — os direitos materialmente fundamentais acima tratados. A partir desta cláusula, afasta-se qualquer pretensão de exclusividade dos direitos formalmente fundamentais, havendo abertura para os direitos materialmente fundamentais num determinado ordenamento jurídico, ainda que fora da Constituição formal.

A Constituição norte americana é pioneira na consagração de uma cláusula aberta. A 9.ª emenda da Constituição norte americana estabelece o Unenumerated rights, instituindo a garantia de que a enumeração de certos direitos na Constituição não seja interpretada como denegação ou diminuição dos outros direitos que o povo se reservou . Kelsen, comentando sobre esta emenda, escreve que ela consagra a doutrina dos direitos naturais: Os autores da Constituição terão querido afirmar a existência de direitos não expressos na Constituição, nem na ordem positiva. Kelsen continua, dizendo que o que isso se traduz é que os órgãos de execução do Direito, especialmente os Tribunais, podem estipular outros direitos, afinal indirectamente conferidos pela Constituição.  Além da Constituição norte americana, várias outras também consagraram uma cláusula aberta quanto aos direitos fundamentais, dentre essas, a título de exemplo e pela aproximação com Angola, a Constituição portuguesa (n.º 1 do art. 16.º/CRP) e a brasileira (§ 2.º e 3.º do art. 5.º/CRFB).

A CRA, seguindo o caminho da Constituição norte americana e de suas congêneres da lusofonia, estabelece no n.º 1 do art. 26.º, uma cláusula aberta que permite a integração de outros direitos fundamentais não especialmente previstos no catálogo de direitos fundamentais constantes da Constituição. Desta feita, quanto aos direitos fundamentais, a CRA não estabelece um “numerus clasusus” (taxatividade), tendo o Legislador Constituinte admitido quer a validade e eficácia na ordem jurídica angolana dos “...direitos fundamentais existentes ao tempo da respectiva redação, quer em face do processo histórico-jurídico de emergência de novos direitos fundamentais diante dos novos desafios do desenvolvimento das sociedades.”

De resto, é o que consta expresso no texto constitucional:

Artigo 26.º (Âmbito dos Direitos Fundamentais)
1. Os direitos fundamentais estabelecidos na presente Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e regras aplicáveis de direito internacional.”

Assim, esta cláusula aberta permite considerar as normas de direitos fundamentais constantes de diplomas emanados pelo Legislador Ordinário (veja-se, por exemplo, o direito à prestação de alimentos, art. 259.º)  ou de instrumentos de Direito Internacional, bem como, por maioria de razão, os direitos fundamentais resultantes implicitamente  dos princípios e regras consagrados na Constituição, como sendo materialmente constitucionais, ainda que não o sejam formalmente.

Desta feita, quanto aos direitos fundamentais, nós temos:
a) Direitos formalmente fundamentais (constantes do catálogo de Direitos Fundamentais — o Título II da CRA);
b) Direitos materialmente fundamentais fora do catálogo, mas esparsos na própria Constituição;
b) Direitos materialmente constitucionais resultantes de forma implícita dos princípios e regras constitucionais;
c) Direitos materialmente constitucionais constantes de dispositivos infraconstitucionais e de instrumentos de Direito Internacional sobre Direitos Humanos.

Assim, tendo-se verificado esse reconhecimento e abertura constitucional aos direitos fundamentais não expressamente consagrados no catálogo de direitos fundamentais, entendemos que os direitos materialmente fundamentais (podendo ser direitos civis e políticos e direitos sociais, económicos e culturais) gozam do mesmo tratamento jurídico (quanto as regras e princípios aplicáveis, aplicação e eficácia, restrição e limitação ) que os direitos formalmente constitucionais (os constantes do catálogo de direitos fundamentais na CRA), pelo que, nos arriscamos a fazer uma interpretação conforme a Constituição do art. 49.º da LPC, no sentido de que é possível a interposição de recurso extraordinário de inconstitucionalidade junto do Tribunal Constitucional, contra qualquer acto do Estado (administrativo ou judicial) que viole algum direito fundamental resultante de algum dispositivo infraconstitucional interno ou de algum instrumento internacional de direitos humanos ou direito fundamental esparso na CRA ou de direito resultante implicitamente de princípios ou regras constitucionais.

4.Conclusão

Por fim, aqui chegados, entendemos que o Legislador Constituinte, por via da cláusula aberta, deu espaço para o reconhecimento de outros direitos fundamentais que não constem expressamente do catálogo da CRA, o que se justifica tendo em conta a natureza histórica dos direitos fundamentais, sendo conquistas da humanidade ao longo dos estádios de sua existência. Enquanto existir a humanidade, continuarão surgindo necessidades de reconhecimento de faculdades/garantias que se julguem essenciais para o pleno desenvolvimento da pessoa humana quer enquanto indivíduo quer enquanto ser social, pelo que não se justifica uma pretensa exclusividade, taxatividade ou tipicidade dos direitos fundamentais, antes se torna razoável uma abertura aos mesmos.

Assim sendo, a fundamentalidade de direitos pode ser formal — quando expressos no catálogo de direitos fundamentais da CRA, ou material — aqueles que, mesmo fora do catálogo, concretizam as exigências da dignidade, liberdade, igualdade e até mesmo a fraternidade humanas. Pelo que falamos em direitos fundamentais em sentido formal e em sentido material. Entendemos ainda que o regime jurídico aplicável aos direitos materialmente fundamentais é mesmo aplicável a todos os direitos fundamentais.

5.Bibliografia

https://tempodepolitica.com.br/direitos-humanos/

MACHADO, Jónatas, COSTA, Paulo da e Hilário, Esteves in Direito Constitucional Angolano, 2ª ed., Coimbra Editora;

MOTTA, Sylvio, in Direito Constitucional – Teoria Jurisprudência e Questôes, 27.ª ed., Editora Método;

CONCEIÇÃO, Lourivaldo da, in Curso de Direitos Fundamentais, Ed. UEPB;

SARLET, Ingo Wolfgang in Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988

SARLET, INGO WOLFGANG, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003;

MIRANDA, Jorge in Manual de Direito Constitucional, Tomo II e Tomo IV;

MIRANDA, Jorge. A Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Constituição. In: Estudos sobre a Constituição. Lisboa: Livraria Petrony, v. 01: 49-61, 1977;
Dirley da Cunha Júnior in artigo “A Natureza Material dos Direitos Fundamentais.

Acção Directa de Inconstitucionalidade n. 939-7 – Supremo Tribunal Federal Brasileiro;

SANTOS, Luís Sérgio Arcanjo dos, in artigo “A Efetivação do Direito a Alimentos como Direito Fundamental.”

ANDRADE, Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983;

Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007.


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